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Suicídio ritual do escritor Mishima, que tentou influenciar exército do Japão, completa 50 anos

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Suicídio ritual do escritor Mishima, que tentou influenciar exército do Japão, completa 50 anos

Na quarta-feira, 25, faz 50 anos que o escritor japonês Yukio Mishima se suicidou, aos 45 anos. Praticou o seppuku (haraquiri). Cortou o ventre com um punhal e um discípulo cortou sua cabeça com um sabre.

Cotado para ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, Mishima — seu nome era Kimitake Hiraoka — chegou a ser chamado de “Thomas Mann do Japão” e “Proust do Oriente”. Sua tetralogia “Mar da Fertilidade” é um best-seller transnacional. “A lembrança da morte e o problema da ilusão” são os temas centrais da prosa do autor japonês, segundo o próprio.

Mishima escreveu romances, contos, ensaios e dramas teatrais. Era ator e dirigiu um filmeto, “Patriotismo”, baseado em um conto de sua autoria.

O filme “Mishima”, de Paul Schrader, é uma radiografia compacta de um indivíduo e escritor complexo e que ainda está sendo “decifrado” por biógrafos, pesquisadores e críticos literários. Em português há poucas obras a seu respeito. Vale consultar “A Vida e a Morte de Mishima” (L&PM, 311 páginas, tradução de Milton Persson), do jornalista britânico Henry Scott Stokes. Os dois eram amigos. A escritora francesa Marguerite Yourcenar escreveu “Mishima ou a Visão do Vazio” (Estação Liberdade, 128 páginas, tradução de Mauro Pinheiro). Um belo livro é “Kawabata-Mishima Correspondência — 1945-1970” (Estação Liberdade, 256 páginas, tradução Fernando Garcia). Os livros do escritor saíram no Brasil pelas editoras Brasiliense, Companhia das Letras e Estação Liberdade. Inicialmente, em traduções indiretas. Depois, em traduções feitas a partir da língua japonesa.

Acaba de sair na Espanha o livro “Yukio Mishima — Vida e Morte do Último Samurai” (La Esfera de los Libros, 400 páginas), de Isidro Juan Palacios, doutor em literatura contemporânea (sua tese é sobre o escritor japonês). Javier Blánquez, do jornal “El Mundo” (edição de sexta-feira, 13), resenha a obra. Para este texto, uso parte de sua recensão e o livro de Scott Stokes.

Seppuku e resistência à modernização

O jornalista Sam Jameson, do “Chicago Tribune”, perguntou a Mishima sobre a origem “do costume local do seppuku”. A explicação do escritor, citada por Scott Stokes: “Essa mesma pergunta já me foi feita, certa vez, pelo cineasta inglês Basil Wrigth. Respondi por carta: ‘Não posso acreditar na sinceridade ocidental, pois ela é invisível, mas, na época do feudalismo, julgava-se que ficasse localizada nas nossas entranhas e, quando precisava-se demonstrá-la, tínhamos que abrir a barriga a faca, para que ficasse visível. E isso também servia como símbolo de estoicismo do soldado, do samurai: todo mundo sabia que era o método mais doloroso de suicídio. E o motivo que os levava a preferir essa morte terrível era porque permitia provar a coragem do samurai. Esse modo de morrer foi uma invenção japonesa que os estrangeiros não puderam copiar!’”.

No final da década de 1960, Mishima criou um “exército particular” — o Tatenokai (Sociedade de Defesa) —, composto de estudantes tradicionalistas. A Scott Stokes, que havia se tornado seu amigo, o escritor disse (a síntese é do jornalista): “Todo o Japão está amaldiçoado. As pessoas só pensam em ganhar dinheiro; a velha tradição espiritual não existe mais; o materialismo ocupa a ordem do dia”.

A modernização do Japão, sua ocidentalização, não agradava a Mishima, um cultor da “divindade” do imperador nipônico. Por isso, no dia 25 de novembro de 1970, invadiu, junto com seus subordinados, uma base militar do Jieitai (as forças armadas do país), em Tóquio, e tomou o comandante do exército, general Kanetoshi Mashita, como refém. Entretanto, no lugar de encontrar apoio dos militares, os membros do Tatenokai foram vaiados. Seriam ridículos, seres de outros tempos num tempo que abdicava de samurais, exceto no cinema e no teatro. A “volta” do passado não era aceita pelos japoneses. As ditas “maluquices” de Mishima e sua turma chamavam mais atenção no exterior, sobretudo de jornalistas, do que no Japão.

Entre os companheiros de jornada de Mishima estavam Chibi-Koga, Furu-Koga, Ogawa e Masakatsu Morita, o líder estudantil do Tatenokai. O lema do grupo era “Hokoku Nippon” — a “A reconstrução imperial do Japão”. Pretendiam restaurar o passado — visto como “maravilhoso” e verdadeiramente nipônicos. Eram samurais “fora do lugar”.

Curiosamente, quando Mishima e seus paramilitares chegaram à base militar, o general Mashita os esperava, e sem nenhum receio.

Depois de mostrar um sabre do século 17, da escola Seki, Mishima deu ordens para seus “soldados” amarrarem e amordaçarem o general. O escritor-samurai queria “obrigar o general a dar ordem aos subalternos para a convocação de todo o destacamento do QG do Exército Oriental, cerca de mil homens. Queria os soldados reunidos no pátio de desfiles, na frente do prédio; iria fazer-lhes um discurso patriótico, ali da sacada”.

Mishima no papel de samurai | Foto: Reprodução

O plano começou a ruir quando a sala foi invadida por cinco oficiais do exército, desarmados. Mishima gritou: “Fora!” E “sacudiu o sabre de um lado para outro, provocando violento zunido sobre a cabeça de todos. Alguns recuaram, outros se encolheram”.

Quando os militares avançaram, Mishima atingiu as costas de um coronel, que acabou sofrendo um corte. Um sargento reagiu e o escritor quase decepou-lhe uma mão.

Sangrando “copiosamente”, os militares saíram da sala, empurrados por Mishima.

O general Yamazaki e mais seis militares decidiram parlamentar com Mishima, que reagiu duramente: “Muito bem! Agora vocês já viram! Olhem bem! Se não saírem daqui, eu mato o general”.

Yamazaki perguntou: “Nós não atinamos ainda com o que quer. Diga o que é”. Mishima atacou com o sabre e atingiu as costas do general e três coronéis.

Mishima: autor de romances, contos, ensaios e peças de teatro | Foto: Reprodução

O coronel Hara perguntou: “Quais são suas exigências?” Mishima exigia “que os oficiais do Jieitai tinham que convocar um desfile diante do QG do Exército Oriental”. O militar refutou.

Mishima “ordenou” ao general Mashita que convocasse os mil recrutas do 32º Regimento de Infantaria para, junto com quarenta membros do Tatenokai, ouvir seu discurso.

Ao coronel Yoshimatsu, Mishima entregou uma lista de pedidos. “Se não forem atendidos, eu mato o general e depois me suicido”, advertiu.

As armas do exército de Mishima eram um sabre, em suas mãos, e um punhal, nas mãos de Morita. Chega a polícia e fotografa a cena.

Mishima exigia silêncio, mas o barulho, devido à multidão de militares e aos helicópteros, era alto e incontrolável. Integrantes do Tatenokai divulgaram o manifesto de Mishima: “Nós, membros do Tatenokai, sempre fomos muito bem tratados pelo Jieitai. Por que resolvemos cuspir no prato em que comemos?

“Simplesmente porque respeitamos o Jieitai. As Forças Armadas são a própria alma nipônica.

“Vimos o Jieitai ser tratado feito joguete pelos chefes da nação. E, assim, o Jieitai protege o próprio instrumento que lhe nega o direito de existir; a Constituição da Paz [refere-se à Constituição de 1947, imposta pelas Forças Aliadas].

“Perderam-se várias oportunidades de corrigir esse erro espantoso. No dia 21 de outubro de 1969, o Jieitai deveria ter-se mobilizado para se lançar à luta conta os manifestantes pacifistas. Deveria, então, ter assumido o poder e exigido a reforma da Constituição.

“Deixaram passar a oportunidade. A honra da Pátria está em jogo. O Jieitai é inconstitucional; e ninguém tomou nenhuma medida para salvá-lo. [Mishima se refere ao artigo 9 da Constituição, segundo o qual o Japão ‘jamais manterá’ Forças Armadas.]

“Os nossos valores fundamentais, como cidadãos japoneses, estão ameaçados. O imperador não ocupa mais o lugar a que tem direito no país.

“Esperamos até agora, em vão, que o Jieitai se rebelasse. Se nada foi feito no sentido de impedir, o Japão continuará sendo controlado pelas potências ocidentais no próximo século!

Mishima e o escritor Yasunari Kawabata | Foto: Reprodução

“Vamos devolver o Nipão à sua verdadeira dignidade e vamos morrer. Será que vocês só valorizam a vida, permitindo que o espírito morra?… Nós lhes mostraremos um valor ainda maior do que o respeito à vida. Não é liberdade, nem a democracia. É o Nipão! Nipão, o país da História e da tradição. O Japão que amamos”.

O manifesto foi traduzido e sintetizado por Scott Stokes.

Os soldados ficaram perplexos com a ação do grupo de extrema direita. Naquele momento, segundo Scott Stokes, “só a esquerda contestava a aliança com os norte-americanos, pedra fundamental da política externa nipônica”.

Baixinho, magro e vigoroso, Mishima surgiu na sacada, com “o cabelo preso pelo hachimaki, símbolo do Sol Nascente no meio da testa”. Saltou para o parapeito. Estava fardado e com as luvas sujas de sangue.

O discurso de Mishima contra a modernização do Japão, em defesa da tradição imperial, acabou sendo recebido com vaias. Começaram a gritar: “Caia fora daí!”, “ninguém concorda com você!”

Mishima como São Sebastião | Foto: Reprodução

“A nossa Pátria não possui alicerces espirituais. Por isso é que vocês não concordam com o que eu estou dizendo! Vocês não compreendem o Japão. O Jieitai tem que pôr as coisas em ordem!”, discursava Mishima.

As vaias aumentaram. “Pare de bancar o herói”, gritou um homem.

Mishima clama para que se proteja a “tradição japonesa” e o imperador. O público vaia de maneira estrepitosa. Ante a reação negativa, o escritor ataca: “Vocês serão meros mercenários americanos”.

“Nenhum de vocês quer se rebelar junto comigo?” — pergunta Mishima. Não houve entusiasmo algum. Chamam-no de “maluco”.

Ante a recusa da soldadesca, que o considera um samurai de um passado não retornável, Mishima lamenta: “Não querem se rebelar. Não querem fazer nada. A Constituição não significa nada para vocês. Vocês não estão interessados. Perdi toda a esperança com o Jieitai”.

Mais vaias. Mesmo assim, Mishima ainda diz: “Eu saúdo o imperador! Tenno Heika Banzai” (Viva o imperador!”).

Da multidão, alguém grita, sugerindo: “Matem esse cara! Deem um tiro nele!”.

O que restava? O haraquiri, o seppuku.

Mishima pegou um yoroidoshi, um punhal pontiagudo, afundou-o no ventre e gritou: “Tenno Heika Banzai!” Em seguida, começou a cortar o ventre, horizontalmente. “O punhal permaneceu no talho e ele continuou a cortar em forma de cruz. O sangue jorrava da ferida, escorrendo ventre abaixo, caindo no colo”, relata Scott Stokes.

O escritor havia pedido a Morita: “Não me deixe ficar muito tempo em agonia”.

“Morita aplicou a lâmina com toda a força. Tarde demais. O impacto do golpe foi grande, mas o sabre estalou contra o tapete vermelho no lado oposto de Mishima, que recebeu um corte profundo nas costas e nos ombros”, conta o repórter inglês. Os estudantes insistiram: “De novo!” “Mishima, caído no tapete, gemia, asfixiado pelo próprio sangue e se retorcendo de ambos os lados. Os intestinos lhe escorriam da barriga aberta.”

Morita aplicou um novo golpe de sabre, mas acertou o pescoço. Furu-Koda tomou o sabre e, “com uma única cutilada, separou a cabeça do corpo”.

Em seguida, Furu-Koga degolou Morita, o amigo íntimo de Mishima.

Mishima disse “não” à modernização do Japão — que se tornou a segunda maior economia mundial (hoje, perdendo o posto para a China, é a terceira) — desaparecendo fisicamente. Acabou se tornando um objeto de culto, um escritor icônico. Na verdade, era e é um grande escritor que, um dia, quis ser militar e político, dando um golpe de Estado. Cinquenta anos depois, o que permanece é o criador artístico.

Na sua última entrevista, Mishima disse que estava esgotado

Isidro-Juan Palacios percebe, assim como outros autores, que a morte ritualizada de Yukio Mishima aparece em sua obra, como se a vida fosse, aos poucos, imitando a arte. Dizer que o escritor era “maldito”, “narcisista”, “exibicionista”, “homossexual” e “fascista”, pontua o scholar espanhol, se ajuda a entender, não explica um indivíduo e artista tão complexo e múltiplo quanto o japonês.

Por ser “múltiplo”, daí sua complexidade, Mishima é difícil de apreender de maneira simplista, sugere Palacios. O fato de ser de extrema-direita prejudica sua obra literária? Como no caso do francês Louis-Ferdinand Céline — a rigor, pior, em termos políticos, do que o japonês —, paradoxalmente. Embora contaminada pelas ideias de Mishima, sua obra parece, e não vagamente, autônoma. Talvez relativamente autônoma. O autor certamente entendia que uma posição política — especialmente se radical — tende a limitar e comprometer a qualidade da criação artística. Por isso lutava contra si mesmo para, na sua literatura, “derrotar” o político. Há uma beleza retardatária — nostálgica —, temperada por uma linguagem refinada, em toda a prosa do escritor. Há, digamos, um modernista “enrustido” tentando, às vezes, se passar por um autor de outro tempo. Scott Stokes espantou-se com o estilo de vida ocidental de Mishima. Logo ele que era tradicionalista.

Mishima, pontua Palacios, era “um nostálgico do Japão feudal. Por influência de sua avó, Natsu Hiraoka, descendente da nobre família Tokugawa” (cito aqui a resenha de “El Mundo”). O menino foi educado por Natsu. Ele não saía de casa, vivendo numa “bolha”. Por isso, “se refugiou na leitura, nos mitos, na idealização da história”.

Bem jovem, concluiu que “os símbolos da vida, a morte e o sexo, eram a mesma coisa”. No livro “Confissões de uma Máscara” (Companhia das Letras, 200 páginas, tradução de Jaqueline Nabeta), uma história autobiográfica, Mishima revela que, ao ver uma imagem de São Sebastião com flechas cravadas no corpo, masturbou-se.

Adulto, frisa Javier Blánquez, “dissimulou sua homossexualidade e se uniu a uma mulher, Yoko Sugiyama”, com quem teve dois filhos. Sua sexualidade talvez fosse mais variegada e não caiba num rótulo redutor.

Mishima lia tudo — contos de fada, história e romances ocidentais. Falava inglês fluentemente, segundo Scott Stokes. Apreciava a literatura do irlandês Oscar Wilder, do alemão Thomas Mann e do italiano Grabriele D’Annunzio (talvez para reforçar sua pegada conservadora). A. E. Van Vogt era o escritor de ficção científica que lia com mais interesse.

Workaholic, escrevia de madrugada, e sem parar. Era “pura energia”. Escrevia um romance ou uma peça de teatro em cinco meses, em média. Em 21 anos, escreveu dezenas de obras, hoje enfeixadas em 36 volumes (a edição japonesa). “El Mundo” menciona 257 obras.

Palácios sustenta que duas ideias centrais vicejam na literatura de Mishima: “A literatura como ação e a morte como final sublime da vida. Sonhava morrer na plenitude, deixando um corpo belo: seria a culminação estética, gloriosa, de sua existência e de sua obra, e para isso fazia exercícios físicos desde os 20 anos. Planejou sua morte épica e honrosa, deixando pistas em romances como ‘Cavalo Selvagem’ [volume 2 da tetralogia “Mar da Fertilidade”] e no seu filme ‘Patriotismo’, no qual atua e pratica o haraquiri [sob a música “Tristão e Isolda”, de Richard Wagner]. A morte é a sublimação do amor, e tal como admirou a beleza, visceralmente, decidiu morrer em 25 de novembro de 1970.” O trecho entre aspas é da resenha de “El Mundo”.

“Decepcionado com a perda do heroísmo nipônico, rebelado contra a modernização que adormecia o ardor guerreiro da nação, Mishima protestou com sangue”, assinala Javier Blánquez. Ante a anemia patriótica dos japoneses, o escritor decidiu que era o momento de sair de cena, em termos físicos. Mas, como escritor e figura icônica, está mais vivo do que nunca.

Numa entrevista (a última do escritor) ao crítico literário japonês Takashi Furubayashi, Mishima admitiu: “Estou esgotado”. E acrescentou: “Se verdadeiramente minha lógica não se sustenta em uma experiência original, se simplesmente flutua no ar, minha estética seria uma grande mentira”.

“Viver sem fazer nada, envelhecer lentamente, é uma agonia, é desgarrar-se do próprio corpo”, disse na entrevista. A fala do autor de “Sol e Aço” e o “Marinheiro Que Perdeu as Graças do Mar” (que cita o Brasil) está no livro “Últimas Palavras de Yukio Mishima” (Alianza Editorial, 168 páginas), de Takashi Furubayashi e Hideo Kobayashi.

Nem a Suécia escapou da ira de Mishima. “Vivemos em uma época na qual a força é maltratada”, postulou. “A implantação do Estado do Bem-Estar só revela que a Suécia ‘é um país efeminado que vive no relativismo’.”

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