“Borusonaro” foi uma das palavras mais marcantes na mídia japonesa no mês de julho. Entre a suspeita de Covid-19, o diagnóstico da doença e o recente resultado negativo para coronavírus Jair Bolsonaro, cujo sobrenome é adaptado para “Borusonaro” na língua japonesa, foi notícia diversas vezes no país asiático. Desde maio, a imagem do presidente derrete no exterior.
Na TV, proliferaram cenas do brasileiro em situações desaconselhadas por autoridades de saúde, como aglomerações e sem o uso de máscara.
Ao noticiar o diagnóstico de coronavírus, a NHK, empresa de mídia estatal nipônica, por exemplo, destacou que Bolsonaro “diversas vezes descreveu a Covid-19 como uma gripezinha”.
A declaração, dada pela primeira vez em março, foi a gota d’água para o paulista Hundenbergui Furuya, 58, radicado no Japão há 30 anos. Na época, o país asiático já enfrentava uma onda de Covid-19.
“Votei nele, mas me arrependi. O primeiro que tinha de dar exemplo em uma situação assim era ele. Tanto não se cuidou que foi infectado”, diz Furuya, operador de máquinas, que mora na província de Gunma.
“No Japão, máscara já era comum antes da pandemia, e agora quase todo mundo está redobrando os cuidados. No Brasil, há todo tipo de desculpa pra não usá-la: é desconfortável, embaça os óculos. Tem até desembargador rasgando multa, um absurdo. Quem exerce função pública precisa dar exemplo”.
O núcleo nipo-brasileiro bolsonarista é forte: 90% dos brasileiros residentes no Japão escolheram o candidato nas eleições de 2018. “No termômetro político aqui, a temperatura ainda é alta, mas há uma percepção leve de queda por causa da pandemia”, diz o paulistano Leandro Neves dos Santos, 36, que está há 14 anos no Japão e administra uma página no Facebook voltada à comunidade brasileira no país.
“Noto que há eleitores arrependidos, muitas vezes influenciados pelas notícias na imprensa japonesa —os próprios japoneses têm criticado a postura de Bolsonaro. Preciso ser sincero e admitir essa tendência, é o que vejo. Não tenho político de estimação, não sou bolsonarista fanático. Meu partido é o Brasil, como diz o presidente”, afirma Santos, operador de empilhadeira, da província de Tochigi.
Ele considera que o governo federal tem tentado combater a crise, mas enfrenta entraves estruturais. Diz que a diferença entre os países é que no Japão “não tem politicagem” e que, no Brasil, “a briga política atrapalha tudo”, mas se ressente da demora do presidente para nomear um novo ministro titular da Saúde.
Na página AfrodeksTV, o brasileiro incentiva seus 44 mil seguidores a evitar aglomerações no Japão. Já no Brasil, diz, o contexto é diferente nos atos pró-governo. “Toda manifestação precisa de um líder. Bolsonaro é o líder. Se você pensar ‘meu povo está na rua, preciso ir para lá’, não vejo uma postura errada dele, antes do diagnóstico. Mas sou suspeito, sou eleitor e apoiador”, frisa
O brasiliense Rodrigo Gonçalves, 47, eleitor de Bolsonaro e há 24 anos no Japão, também destaca a politização da pandemia. Pondera que, enquanto no país asiático o governo está preocupado apenas com a doença, no Brasil “querem imputar a culpa a alguém”. “O Brasil está executando o que é possível, não vejo descaso por parte de um ou outro governante.”
Atualmente desempregado, ele vive em Hamamatsu, a cidade “mais brasileira” do arquipélago e que recebeu Bolsonaro aos gritos de “mito” em 2018. Nos últimos dias, o município registrou 65 novos casos de coronavírus, totalizando 87 até segunda (27). “Assustador, né? [Mas] vou dizer que é culpa do governador?”
Embora considere alto o número de infecções na cidade, o brasileiro conta que não mudou nada em sua rotina. “Dentro do meu universo não é essa bitolação. Não uso máscara. Detesto esse ‘trem’, porque falta ar. Frequento lugares como sempre. No meu conhecimento, não acredito que eu vá pegar o vírus.”
Máscaras e distanciamento social são recomendações da OMS (Organização Mundial da Saúde), mas Gonçalves diz não confiar no órgão. Também questiona se a instituição internacional tem mais conhecimento da realidade do Brasil do que o ministro da Saúde do governo Bolsonaro.
Quando lembrado pela reportagem de que o país está sem um titular na pasta, diz que “não precisa ser um ministro da Saúde”. “Pode ser um secretário, alguém aí responsável.”
Para a paulista Heloisa Sakamoto, 48, há 12 anos instalada na província de Kanagawa, “há quem se desespere, inflando informações e há quem tente minimizar, desconsiderando o número de mortes [no Brasil]”. “E há quem tente negar a própria pandemia, muitas vezes inspirado por Bolsonaro. É irresponsável, para dizer o mínimo.”
Brasil e Japão tomaram rumos diferentes na crise. Segundo dados da Universidade Johns Hopkins, em 157 dias —do registro do primeiro caso até sexta-feira (31)—, o Brasil registrou 2,6 milhões de infecções e 91 mil mortes. O Japão, por sua vez, contabilizou 36 mil casos e 1.008 mortes em 192 dias — também até sexta.
Ainda que o país asiático não tenha determinado um “lockdown”, adotou restrições no começo da crise e, após flexibilizar as medidas, no final de maio, recomendou à população que aglomerações e espaço fechados fossem evitados. Atualmente, no entanto, o país atravessa novas ondas de contaminações.
“Há pontos importantes que valem para os dois. Primeiro, governantes precisam dar o exemplo. Segundo, ouvir os especialistas. Terceiro, controlar a curva antes de pensar em reativar a economia. Quarto, ajudar os cidadãos a atravessar a crise”, diz a paulista Carmen Tsuhako, 51, há 29 anos no Japão
É nos tempos de crise que se vê quem sabe governar. Bolsonaro não sabe”, acrescenta a operária, antibolsonarista e moradora de Toyohashi, na província de Aichi.
À distância, enfrentando 12 fusos de diferença para acompanhar o que acontece no Brasil, a imagem é de “um navio à deriva”, define o paulista Edson Assato, 49, em Yokohama e desde 2004 no Japão. “A situação é catastrófica. Antes de Bolsonaro ser eleito, eu já estava temeroso, mas ele superou todas as expectativas. É surpreendente que ainda tenha tanto apoio da comunidade brasileira aqui.”
O brasilianista Ryohei Konta, pesquisador do Ide-Jetro (Institute of Developing Economies – Japan Trade Organization), que já foi professor visitante da USP, levanta a possibilidade de que, por se sentirem mais seguros no Japão, descendentes de japoneses que apoiam Bolsonaro pensem que é melhor priorizar a economia e, por isso, descartam parar devido à pandemia.
“Você pode morar décadas no Japão, mas sempre será visto como ‘burajirujin’ [brasileiro]. É assim que a sociedade japonesa te vê”, analisa a antropóloga Regina Yoshie Matsue, professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), que pesquisa migrações e saúde
“Isso intensifica os marcadores da identidade, o que torna compreensíveis as discussões tão marcantes sobre política brasileira, inclusive o eco do discurso conservador ‘Brasil acima de tudo’ a milhares de quilômetros de distância’.”
Segundo Matsue, os relatos dos imigrantes são um reflexo da própria sociedade brasileira, de críticas ao discurso negacionista, de antibolsonaristas a bolsonaristas arrependidos, de críticos e fiéis.
“É um ‘little Brazil’ no Japão.”