No dia 6 de agosto de 1945, precisamente às 8h15, hora do Japão, quando a bomba atômica explodiu sobre Hiroshima, a garotinha Junko Watanabe aproveitava a manhã de verão para brincar ao ar livre.
Nesse exato momento, o menino Kunihiko Bonkohara acompanhava o pai no trabalho, de pé, em frente a uma mesa de escritório. E o policial Takashi Morita caminhava acompanhado de 12 auxiliares que ajudariam a construir um abrigo antiaéreo.
Mais de 130 mil pessoas foram mortas pela bomba atômica. Watanabe, Bonkohara e Morita são alguns dos sobreviventes e, até hoje, questionam-se por que estão vivos, enquanto tantos outros morreram. Os três “hibakusha” —vítimas da bomba, em japonês— moram atualmente em São Paulo.
Kunihiko Bonkohara, 80, tinha 5 anos no dia do ataque e teve a casa destruida pelo impacto da bomba
Takashi Morita, 96 anos, que tinha 21 anos na época do ataque a Hiroshima e foi arremessado 10 metros para a frente pelo efeito da bomba
Junko Watanabe, 77, que tinha 2 anos na época do bombardeamento a Hiroshima
No pós guerra, de 1954 a 1972 , cerca de 50 mil japoneses imigraram para o Brasil, de acordo os registros do Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil (MHIJB)
Eles se somaram aos cerca de 190 mil que já estavam no país, desde que o navio Kasato Maru, que trouxe os primeiros imigrantes japoneses ao país, ancorou no Porto de Santos, em 1908.
“Quando a guerra acabou, o Japão estava destruído. O país precisou retirar japoneses de territórios sobre os quais havia avançado antes do conflito, como China, Coreia do Sul e Manchúria”, explica Lidia Yamashita, presidente da Comissão de Administração do MHIJB.
“Esse retorno no pós-guerra foi um problema grande, porque o país precisava ainda mais de alimentos, moradia e alguma ocupação para todo esse contingente.”
Um acordo de paz firmado em 1952 pelos nipônicos com o Brasil, que, durante a Segunda Guerra, combateu as forças do Eixo —formado por Alemanha, Itália e Japão— permitiu a vinda dos imigrantes. Em troca, os japoneses tinham de colonizar áreas ainda pouco exploradas, como norte de Rondônia.
Há sete anos, Watanabe, Bonkohara e Morita passaram a encenar suas histórias no espetáculo “Sobreviventes pela Paz”, dirigido por Rogério Nagai, 42. A peça teatral integra um projeto que, desde 2016, também leva palestras a estudantes e hoje inclui relatos de sobreviventes do Holocausto.
Para os três japoneses, recordar os episódios é evitar que algo como o ocorrido em Hiroshima se repita .
“Apesar de abordarmos um fato que aconteceu há 75 anos, conseguimos transportar o público para aquela data e aquele lugar. A plateia consegue se ver, colocar-se no lugar deles. São narrados detalhes muito pessoais do cotidiano, das famílias, impacta as pessoas de diversas formas”, explica Nagai.
Para o diretor, a mensagem de paz dos “hibakusha” é ainda mais importante no contexto atual, em que a política caminha para os extremos em todo o mundo. “A lógica da guerra não cede espaço à dignidade humana. Estamos começando a ver o retorno de fantasmas que assombravam nossos pais e avós. Não podemos retroceder, nunca, jamais, a esses crimes bárbaros”, diz
Leia a seguir os relatos dos três sobreviventes
TRAUMA DA INFÂNCIA FOI REVIVIDO COM TRABALHO EM PROL DE VÍTIMAS
A temperatura quente e o céu limpo fizeram com que famílias saíssem de casa nas primeiras horas da manhã para aproveitar o dia de verão que começava. Junko Watanabe, então com dois anos, brincava com o irmão mais velho na rua.
“De repente, às 8h15, sentimos um vento muito forte. Vi papel queimado voando, caindo, caindo. Minha mãe veio nos buscar na hora. Depois, caiu a chuva negra, que nos atingiu”, recorda Watanabe, 77.
Vivendo no interior de Hiroshima, a 18 km do epicentro da bomba lançada pelos Estados Unidos, a menina logo sentiu os efeitos da radiação.
“Meus pais contaram que tive diarreia forte. Foi piorando, a comida não parava e saía na hora em que comia. Eles pensavam que eu ia morrer. Graças a Deus e a meus pais estou viva até hoje.”
Watanabe, porém, cresceu sem saber que era uma “hibakusha”. Diante do preconceito que os sobreviventes enfrentavam —havia medo de que a radiação fosse contagiosa—, os pais optaram por não contar.
“Meus pais temiam que [a história] atrapalhasse minhas chances de casar. A maioria não falava sobre o assunto”, explica.
A jovem veio de navio ao Brasil, aos 23 anos, justamente para se casar. Com 38 anos, ao retornar para a Hiroshima para visitar sua família, descobriu que era vítima da bomba.
Mas foi somente aos 60, quando passou a colaborar com a Associação Hibakusha Brasil pela Paz, presidida por Takashi Morita, que o trauma vivido aos dois anos de idade veio à tona.
Watanabe ajudava a organizar o acervo e os documentos da associação quando se deparou com depoimentos escritos por sobreviventes e assistiu a um documentário. As cenas encontraram sensações havia muito tempo guardadas.
“Por que aconteceu naquela hora? Naquele dia? A cada página, tremia, minha pele ficava arrepiada. Essa sensação não sai de mim. Quando falo, fico triste.”
Watanabe leu o relato de pessoas que perderam a pele, presa apenas às unhas, e de alguém que teve de segurar o próprio intestino, que estava para fora do corpo. A imagem que mais a marcou, porém, foi a de uma criança, como ela era naquele 6 de agosto.
“Não dá para saber se era menino ou menina porque queimou todo o corpo. A criança está abrindo a boca e falando, mas não sai a voz. Eu senti. Tenho certeza de que essa criancinha está chamando a mãe. Nunca saiu do meu coração”, diz ela, ao relembrar a cena do documentário.
Por isso, Watanabe, quando está no palco para a peça de teatro, pede que governos abdiquem de armas atômicas: “Não podemos repetir. Todo mundo tem que saber. Era isso que eu queria falar”.
MENINO VIU CORPOS CARBONIZADOS PELA CIDADE E BOIANDO EM RIO
Enquanto a mãe cumpria o trabalho obrigatório do governo e a irmã estudava, restava ao menino Kunihiko Bonkohara, 5, acompanhar o pai no escritório, que não ficava longe da casa da família.
Às 8h15, o garoto viu um clarão. Seu pai o puxou para debaixo de uma mesa. “Boom!”, escutaram eles. Eram os estrondos de janelas e telhados quebrando. Ambos se feriram, mas foram protegidos pela mesa.
Eles estavam a 2 km do local onde a bomba “Little Boy” foi lançada pelos americanos em Hiroshima.
Ao sair do escritório, o cenário era de fumaça por toda a cidade. A casa da família havia desabado. Permaneceram junto ao que restava da residência de um vizinho cujas paredes de cimento não foram completamente destruídas. A proteção, porém, não foi suficiente para evitar a chuva escura.
“Era uma chuva muito preta. Muita gente estava fugindo na hora em que começou a chover. Estavam machucados, com cabelos queimados, rostos vermelhos e olhos fechados. Todo mundo andando com os braços dobrados e com a pele pendurada”, lembra Bonkohara, 80.
Ele escutou pessoas implorando por água. “Meu pai não deixou tomar água, porque o corpo queimado estava muito quente, quem tomava morria.”
No dia seguinte, saíram de bicicleta em busca da mãe e da irmã. Nunca as encontraram. Nos endereços onde trabalhavam e estudavam, tudo estava destruído. “Não tinha nada, só pessoas carbonizadas. Procuramos o dia inteiro e não achamos nada.”
No percurso, pessoas agonizando e corpos queimados. Bonkohara e seu pai alcançaram a extensa ponte Aioi, conhecida pela forma da letra “T”. Ao atravessá-la, o menino olhou para a água. “O rio é enorme, grande, e a correnteza levava os corpos das vítimas boiando para lá e para cá.”
Bonkohara sentiu os efeitos da bomba. Durante a infância, ficou doente e não podia brincar com outras crianças. Até que, aos 19 anos, um médico diagnosticou um problema de coração e recomendou cuidado.
“Se eu viver até os 30 anos, está ótimo”, pensou. Nos anos 1960, viajou para o Brasil para reconstruir a vida. Assim como os colegas de espetáculo, não guarda rancor e pede para que armas nucleares não sejam fabricadas, e a energia atômica, evitada.
“Se a bomba explodir, essa terra acaba. Tudo o que estava vivendo em cima da terra
PARA SOBREVIVENTE, ESQUECER É ENTERRAR HISTÓRIA DE ATAQUE À HUMANIDADE
“Sempre que imaginamos uma tragédia, pensamos em dias chuvosos e tristes. Ninguém espera tanta destruição em um dia tão bonito. Não era possível imaginar algo assim. (…) Tanto no bonde quanto nas ruas, as pessoas pareciam mais leves e alegres pelo dia ensolarado.”
As observações fazem parte de “A Última Mensagem de Hiroshima: O que Vi e Como Sobrevivi à Bomba Atômica” (Universo dos Livros, 2017), autobiografia de Takashi Morita. Hoje, aos 96 anos, seus relatos em forma de livro substituem entrevistas.
Aprendiz de relojoeiro quando jovem, Morita precisou até cuidar do bebê de sete meses do dono de uma loja em que trabalhou. “Levava para passear, dava banho, trocava fralda”, recorda.
Mais tarde, ao ser convocado para o Exército, durante a Segunda Guerra, já tinha experiência na observação de aviões —toda a comunidade de Hiroshima estava envolvida nos esforços bélicos.
Lá, deparou-se com a brutalidade com que novatos eram formados para que fossem soldados sem misericórdia. Viu fome e sofrimento.
Por isso, quando surgiu a oportunidade de participar de uma seleção para ser “kempei”, um policial militar de elite, dedicou-se ao máximo para ser aprovado. A organização, porém, foi extinta ao final da guerra.
No dia em que a bomba foi lançada, Morita tinha 21 anos. Pegou o bonde e caminhava acompanhado de outros dois “kempeis” e 12 auxiliares que trabalhariam na construção de um abrigo antiaéreo. Eles estavam a 1,3 km do epicentro da explosão.
Às 8h15, foi arremessado cerca de dez metros, enquanto um clarão tomava conta da cidade. Depois, veio a escuridão. De seu grupo, apenas cinco se levantaram. Reconhecido pela farda de policial, logo era chamado a prestar socorro. Já nos primeiros minutos, salvou uma mãe e seu filho.
“Vi uma criatura surgir do rio em minha direção. Fiquei confuso, pois não sabia o que era, nunca tinha visto algo parecido. Sequer tinha certeza de que se tratava de um ser humano, de tão desfigurada que estava. Ela seguia andando em minha direção com os braços estendidos para a frente”, conta.
“Conforme se aproximava, meu terror aumentava: era uma pessoa nua, com o corpo todo queimado, parecia revestida de carvão. O mais assustador era que sua pele estava se descolando do corpo.”
Ao longo daquele dia, foram inúmeras as pessoas queimadas que pediam água ou apenas emitiam grunhidos. No epicentro, a temperatura chegou a mais de 1 milhão de graus Celsius. Ainda existem as marcas no concreto das pessoas atingidas.
A parte da família de Morita que morava nos Estados Unidos também sofreu com a guerra.
Irmãos, cunhadas e sobrinhos foram levados a campos de concentração para japoneses, que funcionaram no país de 1942 a 1948 em locais afastados dos grandes centros.
Morita veio ao Brasil, onde acabou fundando a mercearia onde trabalha todos os dias, rotina interrompida pela pandemia do novo coronavírus. Ele fundou, em 1984, a Associação Hibakusha Brasil pela Paz, que inclui também as vítimas da segunda bomba atômica, lançada em Nagasaki, em 9 de agosto.
O grupo chegou a reunir 270 vítimas no Brasil —atualmente são cerca de 80 vivos. Passados 75 anos do episódio em Hiroshima, Morita diz não ter raiva dos Estados Unidos.
“Para sucumbirmos à guerra, basta ocorrer um ato de vingança mais destrutivo que o outro, em um ciclo sem fim. Para derrotarmos a guerra, é preciso o perdão, além do amor”, diz.
Defende, no entanto, que é preciso estar vigilante: “Não posso esquecer esses acontecimentos. Esquecer é também enterrar a história da primeira vez que a bomba de destruição em massa foi utilizada contra a humanidade. É permitir que, um dia, alguém com supostas boas intenções —como os norteamericanos, que tomaram essa atitude drástica para pôr fim à guerra— possam repetir esse feito”