Você sabe o que é o feminismo asiático-brasileiro? O movimento surgiu em 2016 com lideranças femininas de ascendência asiática reinvindicando a interseccionalidade e pluralidade do movimento feminista atual, somatizando à luta pela igualdade de gênero, as especificidades de vivência e opressões relativas as mulheres asiáticas.
As mulheres estão na linha de frente da luta do movimento asiático e têm ganhado visibilidade e espaço como lideranças nas redes sociais. Há quatro anos, o primeiro grupo de debate sobre o tema surgiu, o Feminismo Asiático. Ainda no ativismo digital, no mesmo período, surgiu o Lótus PWR, grupo de estudos e debates sobre a causa asiática que ganhou espaço em todo Brasil e atua até os dias de hoje. CELINA conversou com seis ativistas da causa para entender sobre o movimento, suas dificuldades e principais pautas.
Lina Tag
“Meus avós paternos são nikkeis (descendentes de japoneses que nasceram fora do Japão) e meus avós maternos são brancos. Por isso, cresci em uma confusão identitária ouvindo discursos opostos. A parte amarela da família dizia para eu não ligar para os preconceitos das pessoas brancas, enquanto a parte branca falava que eram superiores por suas características físicas.
Os desafios começaram a ficar mais aparentes quando me deparei com o mercado de trabalho de artes cênicas. Ouvi pedidos para que eu agisse de forma mais “estereotipada” e reclamações quando eu não cumpria com os comportamentos exigidos. “Você não pode ser uma mulher forte, tem que ser mais fofinha e tímida”.
Por eu ter um fenótipo “misturado”, no sentido de ter olhos puxados, mas de cor esverdeada e com sardinhas nas bochechas, me sugeriram até fazer algum tipo de cirurgia na pele e usar lentes de contato de cor escura para “melhorar” a aparência.
Enxergo o feminismo asiático-brasileiro de maneira plural e complexa. Na minha experiência como mulher brasileira nipo-descendente, já tive problemas com estereótipos por não parecer ter o direito curtir uma festa sem ser taxada de “japa louca”.
Os nipo-descendentes carregam uma história de imperialismo complicada, com desejos expansionistas e imposições violentas sobre outras raças e culturas. Portanto, acredito que eu, sendo uma mulher amarela nipo-descendente brasileira, tenho a obrigação de pesquisar, estudar e considerar essas diversas relações dentro do feminismo asiático para não alimentar um estereótipo de que só se trata de nikkeis.
O desafio é tratar, expressar, entender essas diversas questões, levando em consideração seus contextos históricos e recortes específicos de cada movimento, para que a gente possa resolvê-las de forma integrada. O feminismo asiático é fundamental para que possamos nos libertar desses estereótipos e para que nossos corpos possam existir com complexidade.
Lina Tag é nipo-descendente e tem 23 anos. É atriz, cantora e está estudando para ser palhaça.
Mariana Martins Kiotoki
“Me descobri como uma mulher asiática recentemente. Desde criança, eu sempre fui considerada “japinha”, porém na hora de preencher os quadradinhos do IBGE, meus pais sempre marcaram “branca”. Apenas a família do meu pai é asiática e, com o passar das gerações, os costumes e tradições se perderam.
Com o isolamento social causado pela pandemia da Covid-19, tive a oportunidade de fazer cursos e ler mais sobre a cultura asiática e vi que mais pessoas como eu estão descobrindo o seu lugar no mundo. Dessa forma, o feminismo asiático aparece como uma ferramenta educativa para ensinar as pessoas sobre a importância da cultura asiática e principalmente lutar contra a erotização feita pelo mundo ocidental com japonesas mais novas.
Além disso, termos como “japa” apagam a identidade e individualidade de outras culturas asiáticas. Frases como “quem é normal, seu pai ou a sua mãe?” também colaboram para a manutenção do preconceito racial. A importância do feminismo asiático é abarcar essa imensa diversidade de pessoas singulares dentro de uma cultura tão vasta e que merece ser valorizada para além do status quo branco atual”.
Mariana é descendente de japoneses – a quarta geração de sua família. Ela tem 21 anos e faz direito na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP).
Agnes Hikari Suguimoto
“Não podemos falar de feminismo sem falar sobre interseccionalidade. É necessário reconhecer que cada mulher passa por diferentes e múltiplos sistemas de opressão. Logo, não é viável comparar a opressão de uma mulher branca com uma mulher racializada.
O feminismo asiático, para mim, é um lugar de apoio, acolhimento e persistência. É necessário discutir a fetichização e a imposição de estereótipos em mulheres amarelas, mas também precisamos falar sobre a subvalorização da mulher marrom, do tráfico de mulheres no Sudeste Asiático e, ainda, da falta de assistência governamental para mulheres imigrantes nos países ocidentais.
Ser uma mulher de ascendência amarela em um país ocidental é ser constantemente marcada por estereótipos e falta de representatividade. O quadro piora quando colocamos na balança o machismo, sexismo e fetichismo, tão naturalizados na sociedade. Nesse processo de subjetivação e busca pela própria personalidade, por muitas vezes me vi obrigada a me encaixar em estereótipos referentes à mulher amarela, que, convenhamos, são basicamente três: ou você é a “japinha” inteligente, aplicada e tímida; ou se encaixa no quadro de amarelas “rebeldes”, aquelas que fazem mechas coloridas no cabelo e agem por impulso.
Ainda, temos o estereótipo somado à fetichização, em que a beleza da mulher amarela é “exótica”, digna de ser guardada como uma conquista pessoal àqueles que ousarem se envolver com uma pessoa que não se encaixa nos padrões estéticos ocidentais.
O feminismo asiático vem com o intuito de colocar em pauta essas questões e conscientizar tanto as pessoas amarelas quanto as não amarelas sobre as opressões impostas em um sistema altamente machista e xenofóbico”
Agnes é descendente de japoneses – a terceira geração de sua família. Ela tem 22 anos, é estudante de direito e faz estágio no Núcleo Maria da Penha da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP).
Marian Koshiba
“Minha história como mulher asiática envolve muitas questões de aceitação sobre traços e características físicas, que muitas vezes são diferentes dos padrões ocidentais. Tenho memória de sempre estar incomodada com os olhos menores, o nariz, o formato do rosto e outras características.
Essa sensação de inadequação acaba minando a autoestima da mulher oriental. Já pensei em realizar plásticas, já vesti – deixei de vestir – e me maquiei pensando em como disfarçar essas características orientais para me sentir mais bonita ou aceita.
Ouvir coisas como “você é uma japonesa bonita”, ou “você é bonita, parece mestiça”, são alguns exemplos de coisas que já escutei e quem diz não percebe o tom de racismo e misoginia por trás da fala.
Existe também o estereótipo fetichizado que se criou da mulher asiática, que envolve uma imagem de delicadeza, meiguice e submissão, totalmente equivocada e que desconsidera todas as nuances e individualidades das mulheres asiáticas. Já vivenciei abordagem de homens que se interessavam por mulheres orientais simplesmente com base nesse conceito, que traz escondido um interesse machista de uma suposta “fácil dominação” das mulheres asiáticas.
Me reconheço feminista, mas a faceta de enxergar o feminismo pelo viés asiático é uma coisa recente pra mim e uma discussão ainda muito incipiente no Brasil, apesar de termos uma presença muito significativa de asiáticos no país. Então, apesar de consciente de várias questões que influenciaram minha vivência como mulher asiática durante toda a minha vida, somente há pouco tempo tenho relacionado essas experiências com o feminismo asiático, muito graças ao contato com perfis em redes sociais, principalmente no exterior, que têm trazido essas pautas de forma forte.
Nesse sentido, o feminismo asiático age uma ferramenta libertadora para as mulheres orientais se sentirem mais livres e amarem seus corpos, características e personalidades”. Marian Koshiba, de 31 anos, tem ascendência japonesa por parte de mãe e pai. Ela é empreendedora na área do turismo, cantora e escritora.
Juily Manghirmalani
“O feminismo asiático é ainda um ativismo em construção. Fui percebendo ao longo da minha trajetória que não me encaixava no feminismo branco e nem no negro, que algo estava ainda meio fora do que podia me representar. Foi quando encontrei outras meninas que estavam começando a discutir a problemática de raça no campo asiático.
Inicialmente, o mais complexo foi a compreensão geográfica da Ásia. Já que no senso comum ela está mais relacionada aos sujeitos “amarelos” – os de ascendência leste-asiática. Perceber, tanto eu, quanto as outras mulheres, que Ásia engloba Índia, Paquistão, Bangladesh, foi uma chave que virou em nossas cabeças.
Eu sou meio manauara e meio indiana, criada na megalópole de São Paulo. Sou feminista e ativista desde muito jovem, porém interligo ao meu gênero cada vez mais as noções de classe e raça, como constituintes de como me coloco, expresso e entendo o mundo.
O feminismo asiático está criando força aos poucos. No momento, as pautas são a compreensão das narrativas, dismistificar estereótipos, aproximação com teorias pós-coloniais e decoloniais, pautas de imigração e intercâmbio cultural e aliança antirracista, anticapitalista e a favor da equidade de gênero”.
A cineasta Juily Manghirmalani, de 30 anos, é brasileira – filha de um imigrante indiano. Ela é a primeira geração de indo-brasileiros da família.
Alice Yura
“Nasci no município de Aparecida do Taboado, no interior do Mato Grosso do Sul. Por parte materna tenho parentes brasileiros, e por parte paterna, tenho parentes japoneses.
O ritual de morte da minha batchan (avó em japonês) foi um momento decisivo. Após o sutra (ritual budista), houve uma oração para Nossa Senhora Aparecida e, por meio dessa realidade, me constituí como mulher transexual com ascendência asiática e origem caipira.
No feminismo asiático, o que me move são as pautas de solidariedade e engajamento antirracista, não apenas sobre pessoas asiáticas, mas também amarelas e marrons – além de pessoas negras e indígenas. Penso também nas questões de classe, de inclusão de pessoas com deficiência, gênero e sexualidade. O movimento aliado a essas pautas se torna uma grande potência para que o mundo, as culturas e sociedades se tornem cada mais igualitárias.
Como uma mulher trans asiática, vejo a subserviência e doçura fragilizada como um dos maiores estereótipos e obstáculos a serem enfrentados. Vejo, nesse sentido, a importância do debate público e o enfrentamento desses conceitos que desumanizam as mulheres”.