Para os caçadores de uísques raros, a data mais aguardada da temporada será a sexta-feira 20 de maio. Dia em que a filial de Hong Kong da tradicional casa de leilões Bonhams, nascida em Londres em 1793, colocará à venda uma garrafa do japonês Yamazaki 50 Anos. Apenas 50 foram distribuídas e estima-se que hoje não existam mais de 12 disponíveis. A previsão é que a iguaria seja arrematada por um lance entre US$ 450 mil e US$ 570 mil. Sim, meio milhão de dólares. A versão desse malte de cinco décadas chegou ao mercado em 2005 e teve outras duas séries, engarrafadas em 2007 e 2011. “Mas é a primeira edição que sempre é muito buscada por colecionadores”, disse Christopher Pong, chefe do departamento de Vinhos e Uísques da Bonhams. A joia da coroa do leilão, no entanto, deverá ser outra garrafa. Não tão rara, de certa forma. Foram produzidas 200, quatro vezes mais que o 50 Anos. Só que ela é ainda mais valiosa: trata-se de um Yamazaki 55 anos, incluindo um sample de 50ml. Os lances estão estimados entre US$ 500 mil e US$ 640 mil.
E essa estimativa pode ser considerada tímida. A mesma casa Bonhams detém o recorde mundial de preço para uma garrafa de uísque japonês. Em agosto de 2020, leiloou justamente um Yamazaki 55 Anos, o da foto ao lado. Por US$ 790 mil. Estamos falando de R$ 3,7 milhões numa garrafa de uísque. A fortuna se explica não apenas pela raridade da série. Também conta o processo de criação. E a história por trás dela. O primeiro barril foi destilado em 1960 por uma lenda em pessoa, o senhor Shinjiro Torii (1879-1962). Ele foi o papa da bebida no Japão, e fundador da empresa que se transformou no gigantesco grupo Suntory. O lote assinado por Shinjiro foi envelhecido num carvalho típico do país, o mizunara. Mais tarde, outros dois foram destilados, em 1961 e 1964, por Keizo Saji (1919-1999), um de seus filhos e master blender de segunda geração da casa. Estes dois lotes adormeceram em barris de carvalho branco americano.
ADIÇÃO de tempo Mais de cinco décadas depois os néctares dos três barris foram extraídos e passaram pelas experiências alquímicas de outro mestre, Shinji Fukuyo, atual chief blender da Suntory. Na tarefa, ele teve a estreita colaboração de Shingo Torii, neto de Shinjiro, sobrinho de Keizo, master blender de terceira geração. Fukuyo disse que usou como inspiração para esse uísque — que atravessou mãos e sensibilidades de três gerações da família Torii — a passagem do tempo. Não teria como ser diferente. Além disso, adicionou animicamente algo que os japoneses chamam de Wabisabi: a crença de que as imperfeições compõem a perfeição. “Os uísques escoceses muito antigos me deram essa impressão de esculturas gregas perfeitas, como obras de arte”, disse Fukuyo. “Já o Yamazaki 55 Anos está mais para uma antiga estátua budista: calma e misteriosa. Leva tempo para absorver sua beleza interior.”
Da edição 55 anos, foram produzidas duas centenas de garrafas. Metade foi vendida exclusivamente no Japão, em junho de 2020, por meio de uma espécie de loteria. Os exemplares sorteados receberam a gravação do nome do comprador — o preço sugerido ao ‘consumidor comum’ era US$ 60 mil. As demais 100 unidades chegaram ao mercado internacional no ano passado. Cada garrafa, feita em cristal, vem embalada em folhas sutis de Echizen washi, um disputado papel artesanal. Junto ao gargalo, trazem cordões kyo-kumihimo, trançado tradicional de Quioto. Tudo numa caixa de madeira mizunara, a mesma usada no barril de 1960. Ela é delicadamente montada por meio de encaixes artesanais, numa técnica típica japonesa, e finalizada com laca preta, onde se aplica em tom dourado a inscrição The Yamazaki Single Malt Japanese Whisky Aged 55 Years. Com pó de ouro, é óbvio.
“O Yamazaki 55 Anos é como uma antiga estátua budista: calma e misteriosa” Shinji Fukuyo Chief Blender da Suntory.
Todo esse ritual é fruto da sofisticada indústria japonesa de uísque, que tem oficialmente um século. Ou 99 anos, para ser mais preciso. Em 1923, Shinjiro Torii decidiu construir a primeira destilaria local, a Yamazaki, nos limites entre Osaka e Quioto, a 500km de Tóquio. Sua trajetória começa na adolescência, como funcionário de um atacadista farmacêutico, quando passou a dominar a arte da mixagem. Largou o emprego e abriu, aos 20 anos (1899), uma loja que vendia e produzia bebidas, a Torii Shoten. Foi numa época perfeita para isso: segunda metade do século 19 e primeira década do século 20, a chamada Era Meiji. Um período de modernização do Japão. E da abertura do país ao exterior, o que incluiu importar e depois produzir bebidas ocidentais, como vinhos e uísques.
CLASSE MUNDIAL A empresa de Shinjiro Torii começou fabricando um vinho fortificado que fez sucesso e existe até hoje, o Akadama. Não era exatamente o produto de seus sonhos. Ele queria um uísque nacional de classe mundial. De alta qualidade. Fez um all-in aos 44 anos, arriscando todas as fichas de sua empresa na construção da destilaria Yamazaki. E contratou para comandar a criação da bebida um químico que havia se formado em Glasgow (Escócia), outro nome lendário na origem do uísque japonês: Masataka Taketsuru (1894-1979), que havia estudado com profundidade os processos de fabricação da bebida nas três destilarias em que trabalhou durante sua temporada escocesa.
A parceria entre os dois rendeu a primeira safra de Yamazaki, em 1929. Cinco anos mais tarde, Taketsuru partiu em carreira solo e acabou lançando outro gigante, o uísque Nikka, marca que hoje pertence ao conglomerado Asahi Group. Já Shinjiro Torii permaneceu em seu caminho. A caminhada foi longa e os uísques japoneses só passaram à categoria dos grandes e disputados globalmente na virada deste milênio, quando os primeiros prêmios de veículos especializados começaram a surgir. As medalhas e distinções receberam ainda um incentivo incomum e decisivo no mercado americano: o filme Encontros e Desencontros, de Sofia Coppola (2003). Na trama, Bill Murray faz o papel de um ator decadente que está em Tóquio para gravar a campanha de um uísque Suntory. Bastou para a marca virar cult fora do país. Os dois exemplares do Yamazaki no leilão (o 55 Anos e o 50 Anos) são legados dessa centenária jornada. Resumem mais que bebidas únicas. É como ter dentro da garrafa um século de história.