Do livro ao filme, “Favela high-tech” mergulha na tragédia das migrações

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Do livro ao filme,

Viver distante de sua terra, de sua língua e suas referências culturais é desafio para qualquer um. As razões para a partida podem ser inúmeras, voluntárias ou não: guerras, fome, falta de oportunidade, questões políticas, religiosas, sexuais etc. E, no momento em que o mundo assiste a um dos maiores fluxos migratórios da história, discutir a experiência de ser estrangeiro faz de Favela high-tech uma obra atual e necessária.

Favela high-tech é um livro-reportagem escrito pelo jornalista e editor especial do Dom Total Marco Lacerda, quando trabalhava no Japão como correspondente da Editora Abril. “São dois jovens, cada um à sua maneira tentando a sorte em Tóquio, que arriscam a própria vida e acabam esbarrando com a morte”, resume o autor. No entanto, mais do que uma trama de ação repleta de drogas, sexo, negócios escusos em ritmo frenético, a história é uma metáfora sobre ser estrangeiro.

Essa metáfora é o ponto de partida para a transposição de Favela high-tech para o cinema. O filme é projeto da produtora Gullane, gestado há anos e que, agora, vai se materializar com a direção de Karim Ainouz, autor, entre outros, de Madame Satã (2002), O céu de Suely (2006) e A vida invisível (2019). Com gravações previstas para o primeiro semestre de 2021, a obra é uma coprodução da brasileira Gullane, a alemã The Match Factory e a japonesa Bitters End, com orçamento raro para os padrões nacionais: cerca de US$ 5 milhões (R$ 26,6 milhões), sendo 55% do Brasil, 30% da Alemanha, e 15% pelo Japão.

O produtor Fabiano Gullane conta que a história o encantou desde o primeiro momento e que a escolha de Karim Ainouz foi imediata. “Nunca pensamos em outro nome para fazer o filme, o Karim é um cidadão do mundo, um refugiado contemporâneo, que está sempre em movimento, buscando, encontrando, conhecendo países, culturas e jeitos novos de pensar”, relata, acrescentando que o olhar estrangeiro sempre foi premissa para a construção do roteiro. Assim, o trabalho de adaptação ganhou mais diversidade ao ser realizado pelos brasileiros Sergio Machado e Karim Ainouz, o inglês Toby Finlay, e o venezuelano George Walker.

“Basicamente, é contar uma história sobre o que a gente percebe no mundo, uma certa indisposição com os refugiados, estrangeiros, aqueles que não pertencem àquele lugar, como eles se sentem em um país que não é o deles, como eles são recebidos, que sentimentos permeiam as suas personalidades nesta situação”, explica Fabiano.

O cruzamento de culturas, visto através das lentes de quem não pertence àquele determinado lugar, está representado não apenas no processo de todo o filme, mas também na origem do livro. Favela high-tech foi escrito por um brasileiro vivendo no Japão e narra a história de uma decasségui brasileira que, por sua vez, tinha um relacionamento com um americano.

Nascido de uma proposta de reportagem, o livro foi um sucesso editorial ao qual Lacerda atribui a abordagem inédita sobre a vida dos estrangeiros no Japão do início dos anos 1990. “Além da experiência dos decasséguis, entrei na vida dos estrangeiros a partir da minha experiência pessoal de ser estrangeiro em Tóquio. É uma vida muito difícil, no sentido de que o Japão é um país xenófobo. Para se ter uma ideia, há restaurantes onde está escrito na porta ‘entrada permitida só a japoneses’.”

Mesmo depois de morar em vários países, Lacerda relata que ser de outro país no Japão tem sua especificidade. “Um estrangeiro no Japão não perde nunca a noção de que é um estrangeiro. Tudo deixa claro para você que você é um estrangeiro”, explica, ressaltando que o fato não é necessariamente negativo. “É uma cultura milenar com características maravilhosas, mesmo que não possa fazer parte dela. Existe um sentido comunitário que parece que está impresso no DNA das pessoas. O bem comum é respeitado e cultivado, as pessoas não invadem o trabalho, o espaço do outro. E têm muito respeito por isto.”

Lacerda destaca a falsa impressão de que o Japão se tornou um país ocidental, em boa parte causado pela presença de tantos elementos do capitalismo americano – Dunkin’Donuts, McDonald’s espalhados pela cidade, lojas e neons por todo o centro de Tóquio… “Isso é só na casca porque, no fundo, o Japão continua com os dois pés cravados nas plantações de arroz, culturalmente. Nem duas bombas atômicas tiraram esses pés que continuam cravados nas plantações de arroz de sempre. O arroz está lá claramente, o pilar da cultura japonesa”, conta Lacerda.

Para os realizadores do filme, tocar a intimidade de uma cultura tão forte representa um grande desafio. O produtor Fabiano Gullane aponta a necessidade de “sair da casca do que vemos do Japão, dos primeiros olhares, da superfície, e mergulhar mais profundamente, para poder buscar a essência da história que estamos contando”. “Isso no Japão não é fácil, porque ele te dá muitos estímulos visuais, sonoros, de pessoas, de cultura, de jeitos diferentes da nossa cultura brasileira, ou mesmo ocidental”, diz Gullane.

ENTREVISTA COM MARCO LACERDA:

O autor do best-seller Marco LacerdaO autor do best-seller Marco Lacerda

Como surgiu a ideia do livro?
A história do Favela high-tech começou porque eu era correspondente no Japão de cinco revistas da Editora Abril, entre elas a revista Playboy. Um belo dia, vejo na capa da edição japonesa da Playboy, uma belíssima foto de uma modelo brasileira, seguida por um ensaio fotográfico enorme. Era uma mulher belíssima, brasileira, que eu, através dos editores da Playboy japonesa, fiquei conhecendo, para fazer uma matéria com ela. Fui apresentado e fomos conversando, nos encontrando e nos metendo um na vida do outro para poder tornar aquela matéria a mais viva possível.

Qual a história dessa mulher?
Ela chegou no Japão como decasségui, ou seja, essa migração de brasileiros descendentes de japoneses, ou seja, nisseis. Isso é que se chama decasségui, um fenômeno que começou nos anos 1980. Quando vivi no Japão, eram 300 mil, depois esse número subiu pra 350 mil, tudo isso a partir dos anos 1980. Eles iam fazer um pé de meia, mandavam dinheiro para o Brasil durante algum tempo, depois voltavam. Agora, seguem indo, mas já não voltam mais porque as crises brasileiras se tornaram constantes e intoleráveis para quem tem uma chance de ser muito bem muito bem pago pelo trabalho. Embora o trabalho que a Adriana fazia, assim como todo decasségui, é aquele trabalho que japonês não quer fazer mais, o chamado trabalho sujo, pesado e perigoso. Ela trabalhava no fábrica de motores, em Kawasaki, relativamente perto de Tóquio.

Mas depois ela mudou de vida completamente…
Quando a conheci, ela já tinha posado para a Playboy, e já estava envolvida nessa região chamada de misu shobai, que é não muito corretamente definido como indústria do sexo. Misu shobai é uma coisa mais ampla do que isso e tem ali o seu epicentro em Tóquio, numa região chamada Kabukicho. É um lugar fascinante, são vielas ocupadas por todo tipo de barco, sushi bars, boates e hostess bars, que são casas onde as garotas recebem clientes. E a clientela são altos executivos, ou seja, é um lugar onde rola muita grana. Então, para quem trabalhava de sol a sol como operária, ela estava no paraíso. E ela foi abrindo as portas, sem nenhuma resistência e aí fui conhecer. Conheci o namorado dela, que era um jovem americano milionário, que estava no Japão estudando do japonês. E a história dos dois, como fica bem claro, é a trama, o fio condutor do livro.

Como era a vida dos decasséguis em Tóquio?
Os descendentes brasileiros, os nisseis ou decasséguis que vão pro Japão fazer esse trabalho que ninguém quer, sujo, duro e de risco, eles padecem, porque muitos deles não tem miscigenação nenhuma, são iguaizinhos aos outros japoneses, mas não falam japonês, detestam sushi, gostam de feijoada, feijão tropeiro, PF com ovo estalado em cima. Isso é uma coisa esdrúxula aos olhos da maioria dos japoneses.

E para você, como era ser estrangeiro em Tóquio?
Eu morava num gueto no coração de Omotesando, um bairro onde morava a maioria dos jornalistas estrangeiros. No Japão, todo mundo fala inglês como segunda língua e o domínio do japonês não é absolutamente necessário para você realizar a sua profissão de jornalista. Mas viver nesse gueto era uma maneira de uns ajudarem aos outros, porque era complexo viver num bairro ou num lugar habitado só por japoneses, se você não tivesse uma imersão profunda de muitos anos na cultura, a vida podia ficar muito difícil. A vida só ficava mais fácil no momento em que nos juntávamos e íamos em bloco para essa vida noturna ou para momentos de lazer. Sozinho, a coisa ficava sempre um pouco mais difícil. Mas aí, com o tempo, alguns japoneses passavam se aproximar de você, ficavam amigos, pessoas que queriam falar, até praticar o próprio inglês.

Acredita que o tema do livro serve hoje como metáfora para a questão da migração?
Em primeiro lugar, Favela high-tech, sem que eu me desse conta, foi uma espécie de precursor no comentário sobre esse fenômeno das migrações. No Japão não existe ondas de migração dos países do Oriente Médio, da Turquia, do Líbano, da Síria, em que massas, hordas de seres humanos se deslocam, vítimas de todo tipo de preconceitos e carências. São exilados econômicos, exilados políticos, exilados religiosos, exilados por opção sexual, inclusive. Isso tudo é muito comum, essa gente não vai pro Japão. Não sei se é porque existe resistência por parte do país, em abrir as portas para esse povo, ou porque pelo problema da língua, enfim, por outras razões. Não é um país muito atraente para essa gente, esse pessoal perseguido. Perseguidos religiosos, perseguidos por caos econômico e fatores dessa natureza. Se no caso dos brasileiros, não foi uma coisa traumática, as migrações, tais como a gente vê acontecendo hoje, é uma verdadeira barbárie. É uma das maiores tragédias da humanidade. E não é à toa que é uma das bandeiras que Vaticano levanta com a maior veemência, porque são diários os casos fragorosos de violação de direitos humanos que se vê e que motiva essa gente viver pelo mundo afora sem trânsito, sem pátria, sem Deus, sem nada, pernoitando indefinidamente em fronteiras à espera de alguma autorização. É uma vida muito trágica e muito presente no século 21.

ENTREVISTA COM FABIANO GULLANE:

O diretor Karim Ainouz e o produtor Fabiano Gullane em visita a Tóquio, para pesquisa do filme (Gullane/Divulgação)O diretor Karim Ainouz e o produtor Fabiano Gullane em visita de pesquisa a Tóquio (Gullane/Divulgação)

Como descobriu o livro e como vê a história?
Ganhei o livro de presente do Carlos Cortez, um diretor e roteirista, muito próximo da Gullane, e li o livro de uma vez só. E nesse momento já me apaixonei por ele, vi nele, imediatamente, um filme, fiquei louco com a história, e, então fomos atrás dos direitos, conversar com o Marco, conhecer um pouco melhor a história. E o Marco foi sempre um grande parceiro, um incentivador, entusiasta da ideia do filme, e com uma postura muito elegante, profissional e inteligente, no sentido de deixar os roteiristas, o diretor, e nós da Gullane muito livres para evoluirmos nessa adaptação. E quando conseguimos formalizar todas as questões dos direitos, o próximo convidado foi o Karim Ainouz, que se encantou com a história do livro e do projeto, e entrou a bordo muito rapidamente.

Como foram estabelecidas as parcerias com produtoras estrangeiras?
Sempre foi uma ideia nossa e do Karim que o projeto fosse falado, grande parte, em inglês. Que ele pudesse realmente ter uma carreira, não só de filme brasileiro importante, mas no mercado internacional também. O projeto já nasceu bastante ambicioso. E já imaginamos que o projeto já deveria nascer como uma coprodução internacional importante

Qual serão os principais desafios dessa produção?
Qualquer projeto que envolva coprodução, ou coprodução com mais de um país, ou que envolva filmagens internacionais, com duas ou três línguas na sua história e na sua realização, já nasce com um grau de dificuldade extra. Quando esses elementos são no Japão, isso fica ainda mais desafiador. Isso é um pouco a cara do Favela. Ele tem um desafio muito grande de produção, da realmente construirmos uma história íntima, que fala de pertencimento, de sentimento, da vontade de ser amada, de ser reconhecida e respeitada, por uma personagem que é uma mistura de brasileira e japonesa, que está tentando a sua vida no Japão. E, é claro, que também tem um desafio logístico de filmar no Japão, montar uma equipe, que envolve europeus, pela Match Factory, japoneses, pela Bitters End, e brasileiros e outras nacionalidades, pela Gullane. Costumamos dizer na Gullane que o mais difícil de um filme em coprodução é que todas as partes envolvidas estejam fazendo o mesmo filme. Pode parecer só uma frase de efeito, ou até meio boba, mas é impressionante a diferença que tem quando um japonês lê um roteiro, ou quando um brasileiro lê, ou quando um alemão lê, ou um francês. Cada um traz o seu repertório, as suas referências, os seus elementos, então temos esse grande desafio, para fazer com que toda realização técnica, artística, tecnológica, de produção e infraestrutura seja vencedora e traga para a tela algo realmente único. Eu atribuiria o maior desafio desse projeto, acharmos esse filme que fala a todos. É isso que o Karim e a Gullane vêm tentado construir de forma muito intensa nesses últimos anos.

Como a pandemia afetou o projeto?
A pandemia afetou diretamente o projeto. Iríamos filmar no Japão, antes ou depois das Olimpíadas, em 2020, que também foi postergada. Estamos atrasando todo o projeto. Estamos com vontade de filmar logo após as Olimpíadas de Tóquio de 2021, ou, se der, antes. Mas vamos ver como a coisa evolui. Tudo com protocolo fica mais complicado, fica mais caro, e temos que ser muito responsáveis nessa hora. Nós temos muitos talentos, muitas pessoas, muitas responsabilidades em cima dessas pessoas, e a gente não pode dar nenhum vacilo, não pode se sentir inseguro. Agora temos que encontrar o melhor momento, tecnicamente falando, pelas autoridades japoneses, brasileiras, alemãs, a Organização Mundial da Saúde, com base em pesquisas, dados e informações. É um filme que é bastante afetado por todas as precauções necessárias e obrigatórias, que sempre colocamos como prioridade máxima, que devem ser respeitadas.

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