O Japão precisa de trabalhadores de tecnologia, o que pode ser bom para as mulheres

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Se Anna Matsumoto tivesse ouvido seus professores, teria escondido sua mente curiosa – ela fazia perguntas e interrompia a aula, segundo eles. E quando, aos 15 anos, foi preciso escolher um curso em sua escola japonesa, teria evitado a ciência, área que seus professores homens diziam ser difícil para as meninas. Mas Matsumoto planeja se tornar engenheira. O Japão poderia ter muito mais mulheres como ela.

Apesar de sua imagem de alta tecnologia e poder econômico, o país vive um atraso digital, com uma cultura tradicional de escritórios em que máquinas de fax e selos pessoais, conhecidos como hanko, permanecem comuns. A pandemia reforçou a necessidade urgente de modernização, acelerando um esforço de transformação digital promovido pelo primeiro-ministro Yoshihide Suga, incluindo a recente abertura de uma nova Agência Digital destinada a melhorar os serviços on-line notoriamente irregulares do governo.

Asumi Saito, cofundadora de uma organização sem fins lucrativos que oferece acampamentos de tecnologia de um dia para meninas do ensino fundamental e médio, Tóquio, 27 de agosto de 2021. (Shiho Fukada/The New York Times)© Distributed by The New York Times Licensing Group Asumi Saito, cofundadora de uma organização sem fins lucrativos que oferece acampamentos de tecnologia de um dia para meninas do ensino fundamental e médio, Tóquio, 27 de agosto de 2021. (Shiho Fukada/The New York Times)

Para diminuir esse atraso, o Japão deve enfrentar uma severa escassez de trabalhadores de tecnologia e de estudantes de engenharia, déficit piorado pela quase ausência de mulheres. Nos programas universitários que preparam os profissionais dessas áreas, o Japão tem alguns dos menores percentuais de mulheres no mundo desenvolvido, segundo dados da Unesco. Também conta com as menores parcelas de mulheres que fazem pesquisa em ciência e tecnologia.

A melhoria da situação dependerá, em parte, de a sociedade japonesa conseguir se afastar da mentalidade de que a tecnologia é um domínio estritamente masculino. É uma atitude reforçada em quadrinhos e programas de TV e perpetuada em algumas famílias, em que os pais temem que as filhas que se tornam cientistas ou engenheiras não se casem.

Na opinião de Matsumoto, de 18 anos, que vai estudar na Universidade Stanford agora e que pretende estudar a interação humano-computador, manter as mulheres afastadas da tecnologia é um desperdício, algo ilógico. “Metade da população mundial é de mulheres. Se só os homens estão mudando o mundo, isso é muito ineficiente.”

Com o encolhimento e o envelhecimento de sua população e uma força de trabalho em declínio, o Japão tem pouco espaço para desperdiçar talentos. O Ministério da Economia, do Comércio e da Indústria projeta um déficit de 450 mil profissionais de tecnologia da informação no Japão até 2030. Comparou a situação a um “penhasco digital” que surge diante da terceira maior economia do mundo.

No Ranking Mundial de Competitividade Digital compilado pelo Instituto Internacional de Desenvolvimento de Gestão, o Japão ocupa a 27ª posição mundial e a sétima na Ásia, atrás de países como Singapura, China e Coreia do Sul.

O novo impulso digital do Japão poderia oferecer uma oportunidade para sua população feminina, mas também poderia deixá-la mais para trás.

Globalmente, as mulheres podem perder mais do que os homens à medida que a automação assume empregos de baixa qualificação, de acordo com o Relatório Científico da Unesco de 2021, divulgado em junho. Elas também têm menos oportunidades de adquirir habilidades nos campos cada vez mais de alta demanda de inteligência artificial, aprendizado de máquina e engenharia de dados, revelou o relatório.

“Por causa da digitalização, alguns empregos vão desaparecer, e as mulheres provavelmente vão ser mais afetadas do que os homens. Portanto, há uma oportunidade aqui, mas também um perigo”, disse Takako Hashimoto, ex-engenheira de software da Ricoh, que agora é vice-presidente da Universidade de Comércio de Chiba e delegada do W-20, que assessora o grupo dos 20 principais países sobre questões femininas.

Hashimoto observou que havia poucos programas governamentais no Japão buscando atrair mulheres para a tecnologia. Segundo ela, o governo deveria criar programas de requalificação tecnológica para aquelas que querem voltar ao trabalho depois de ter ficado em casa para criar os filhos. Outros sugeriram bolsas de estudo expressamente para mulheres que buscam estudar ciência ou engenharia. “O governo precisa assumir a liderança. Ele ainda não ligou a digitalização à igualdade de gênero”, comentou ela.

Miki Ito, de 38 anos, engenheira aeroespacial, contou que, quando se interessou pelo espaço, ainda na adolescência, tinha poucos modelos além de Chiaki Mukai, a primeira astronauta do país. Na faculdade e na pós-graduação, 90 por cento dos alunos do departamento aeroespacial que ela frequentava eram homens, assim como todos os professores.

Ito, que é gerente geral da Astroscale, empresa que busca remover detritos espaciais que circundam a Terra, disse que não havia encontrado discriminação de gênero nem na escola nem em seu trabalho. Mas contou ter percebido um preconceito fortemente arraigado na sociedade japonesa, incluindo a crença de que as mulheres “não são muito lógicas ou matemáticas”. Ela culpa imagens da cultura popular: “Os meninos usam robôs para lutar contra os bandidos, mas as meninas usam magia. Eu me perguntei por que não vemos muito o oposto.”

Ito prevê oportunidades mistas para as japonesas à medida que o país se digitaliza. Embora aquelas com 40 anos ou mais possam ser deixadas para trás, as mais jovens vão se beneficiar das novas oportunidades. “A juventude de hoje reduzirá a diferença digital de gênero, mas levará tempo.”

Para ajudar a preparar os jovens para o futuro digital, o governo japonês no ano passado tornou obrigatórias as aulas de programação de computadores nas escolas primárias.

Haruka Fujiwara, professora em Tsukuba, ao norte de Tóquio, que ensina e coordena aulas de programação, afirmou não ter visto nenhuma diferença no entusiasmo ou na habilidade entre meninas e meninos.

Aos 15 anos, as moças e os rapazes japoneses têm um desempenho igualmente bom em matemática e ciências em testes padronizados internacionais. Mas, nesse momento crítico, quando os alunos devem escolher entre a área de ciências e a de humanidades no ensino médio, o interesse e a confiança das meninas em matemática e ciências de repente diminuem, de acordo com pesquisas e dados.

Esse é o início do “vazamento” em tecnologia e ciência – quanto maior o nível educacional, menos mulheres, fenômeno que existe em muitos países. No caso do Japão, porém, esse número é ínfimo, gerando uma escassez delas nas escolas de pós-graduação que produzem os melhores talentos científicos do país.

As mulheres compõem 14 por cento dos graduados em programas de engenharia japoneses e 25,8 por cento nas ciências naturais, segundo dados da Unesco. Nos Estados Unidos, os números são de 20,4 por cento e 52,5 por cento; na Índia, 30,8 por cento e 51,4 por cento.

Para ajudar a mudar essa tendência e criar um espaço para que as adolescentes falem de seu futuro, duas mulheres com formação científica, Asumi Saito e Sayaka Tanaka, cofundaram uma organização sem fins lucrativos chamada Waffle, que promove acampamentos de tecnologia de um dia para meninas do ensino fundamental e do médio.

Saito, de 30 anos, e outros oferecem palestras de carreira e experiências práticas que enfatizam a resolução de problemas, a comunidade e o empreendedorismo para combater a imagem nerd estereotipada da tecnologia. “Nossa visão é diminuir a diferença de gênero ao capacitar e educar as mulheres em tecnologia. Pensamos na tecnologia como uma ferramenta. Uma vez que você obtenha essa ferramenta e se capacite, pode causar impacto no mundo”, disse Saito, que tem mestrado em análise de dados pela Universidade do Arizona.

A Waffle apoiou 23 equipes, totalizando 75 adolescentes, em um concurso de criação de aplicativos – incluindo Matsumoto, cuja equipe de três pessoas lançou um aplicativo chamado Household Heroes. Ele divide as tarefas domésticas entre os membros da família, e recompensa aqueles que as concluírem adicionando itens a um personagem fofinho semelhante a um Pokémon. “A divisão do trabalho baseada no sexo está profundamente enraizada. Para mudar o pensamento das pessoas, decidimos desenvolver esse aplicativo”, explicou Matsumoto.

As mesmas expectativas culturais também se estendem à criação dos filhos, levando muitas mulheres a abandonar o emprego assim que dão à luz. Assim, há poucas delas para ascender a papéis de liderança ou contribuir para inovações tecnológicas.

Megumi Moss, de 45 anos, ex-funcionária da Sony, sentiu que tinha de escolher entre a carreira e a família. Durante dez anos, teve um trabalho exigente, mas gratificante, muitas vezes voltando para casa no último trem pouco antes da meia-noite para acordar cedo na manhã seguinte e repetir o ciclo.

Quando ela e seu marido americano, banqueiro de investimentos, decidiram ter filhos, Moss largou o emprego na Sony. Mas, alguns meses antes de dar à luz sua filha, ela começou um negócio on-line, o CareFinder, que ajuda a aliviar os deveres de cuidado infantil das mães, combinando-as com babás. “Sinto que estou lidando com um problema social e ajudando a aliviar o fardo que as mulheres carregam. Isso é realmente gratificante”, afirmou Moss.

Matsumoto contou que também queria melhorar a vida de meninas e mulheres no Japão. Indo contra as expectativas culturais do país, pintou o cabelo de rosa brilhante depois de sua formatura – algo proibido em escolas japonesas. Disse que decidiu cursar a faculdade nos EUA depois de saber que não se meteria em problemas por fazer perguntas nas salas de aula americanas.

Por fim, quer voltar para sua cidade na ilha sul de Shikoku “porque eu odiava aquilo lá. Agora, quero voltar para ajudar a criar uma sociedade que não deixe que as meninas sofram como sofri”.

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